Belo Horizonte, 14 de setembro de 2020

Festa da Exaltação da Santa Cruz

Caros Irmãos,

cc51-1.JPGA festa da Exaltação da Santa Cruz nasceu em Jerusalém e difundiu-se por todo o Médio Oriente. A 13 de Setembro foi consagrada a Basílica da Ressurreição, em Jerusalém mandada construir por Santa Helena e Constantino. No dia seguinte, foi explicado ao povo o significado profundo da igreja, mostrando-lhe o que restava da Cruz de Jesus. No século VI a festa já era conhecida em Roma. Em meados do século VII, começou a ser celebrada no dia 14 de Setembro, quando se expunham à veneração dos fiéis as relíquias da Santa Cruz.

Lendo a crônica do nosso primeiro Capítulo provincial (maio de 2014), a justificativa que nos levou a escolher o nome da Exaltação da Santa Cruz para a nova Província foi: o “Brasil é conhecido co-mo Terra de Santa Cruz; e além disso, o povo brasileiro carrega a cruz da exclusão social, da injustiça, da discriminação, e nosso compromisso é ‘aliviar’ esse sofrimento com o ‘remédio’ da Memoria Passionis. Penso que os Capitulares foram iluminados pelo Espírito Santo na escolha. Agora é só viver a rique-za da mensagem do nome que escolhemos: Província da Exaltação da Santa Cruz.

Para nos ajudar nesse compromisso, quero apresentar uma síntese da meditação do papa Bento XVI na Audiência do dia 27 de junho de 2012, sobre um dos cânticos ou hinos mais antigos da tradição cristã, que são Paulo nos apresenta naquele que é, num certo sentido, o seu testamento espiritual: a Carta aos Filipenses. De fato, trata-se de uma Carta que o Apóstolo ditou enquanto estava na prisão, talvez em Roma. Ele sentia que a morte estava próxima porque afirmou que a sua vida seria oferecida em libação (cf. Fl 2,17).

“Não obstante esta situação de grave perigo para a sua incolumidade física, são Paulo, em todo o texto, expressa a alegria de ser discípulo de Cristo, de poder ir ao seu encontro, até ao ponto de ver a morte não como uma perda, mas como lucro. No último capítulo da Carta há um convite insistente à alegria, característica fundamental do ser cristão e da nossa oração. São Paulo escreve: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo o digo: alegrai-vos!» (Fl 4, 4)”.

“Mas como se pode rejubilar diante de uma condenação à morte iminente? De onde, ou melhor, de quem são Paulo extrai a serenidade, a força e a coragem para ir ao encontro do martírio e do derramamento do sangue?”

cc51-2.JPG“Encontramos a resposta no centro da Carta aos Filipenses, naquele que a tradição cristã denomina carmen Christo, o cântico a Cristo, ou mais geralmente «hino cristológico»; um cântico no qual toda a atenção está centrada nos «sentimentos» de Cristo, isto é, no seu modo de pensar e na sua atitude concreta e viva. Esta oração inicia com a exortação: «Tende entre vós os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus» (Fl 2,5). Tais sentimentos são apresentados nos versículos sucessivos: o amor, a generosidade, a humildade, a obediência a Deus, o dom de si. Trata-se não só nem simplesmente de seguir o exemplo de Jesus, como uma ação moral, mas de comprometer toda a existência no seu modo de pensar e agir. A oração deve levar a uma consciência e a uma união no amor cada vez mais profundas com o Senhor, para poder pensar, agir e amar como Ele, n’Ele e por Ele. Realizar isto e aprender os sentimentos de Jesus é o caminho da vida cristã”.

cc51-3.JPG“Reflitamos brevemente sobre alguns elementos deste cântico profundo, que resume todo o itinerário divino e humano do Filho de Deus e abrange a história humana inteira: desde o estar na condição de Deus, até à encarnação, à morte na cruz e à exaltação na glória do Pai está implícito também o comportamento de Adão, do homem desde o início.

Este hino a Cristo inicia a partir do seu ser «en morphe tou Theou», diz o texto grego, isto é, do estar «na forma de Deus», ou melhor, na condição de Deus. Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, não vive o seu «ser como Deus» para triunfar ou impor a sua supremacia, não o considera uma posse, um privilégio, um tesouro cioso. Aliás, «despojou-se», esvaziou-se a si mesmo assumindo, diz o texto grego, a «morphe doulos», a «forma de servo», a realidade humana marcada pelo sofrimento, pela pobreza, pela morte; assemelhou-se plenamente aos homens, exceto no pecado, de modo a comportar-se como servo completamente dedicado ao serviço dos outros. A propósito, Eusébio de Cesareia - século IV - afirma: «Tomou sobre si mesmo as dores dos que sofrem. Fez suas as nossas humildes doenças. Sofreu e tribulou por nossa causa: isto em conformidade com o seu grande amor pela humanidade» (A demonstração evangélica, 10, 1, 22)”.

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São Paulo continua delineando o quadro «histórico» no qual se realizou este abaixamento de Jesus: «Rebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte» (Fl 2,8). O Filho de Deus tornou-se verdadeiramente homem e percorreu um caminho na total obediência e fidelidade à vontade do Pai, até ao sacrifício supremo da própria vida. Mais ainda, o Apóstolo especifica «até à morte, e morte de cruz». Na cruz Jesus Cristo alcançou o máximo grau de humilhação, porque a crucifixão era a pena reservada aos escravos e não às pessoas livres: «mors turpissima crucis», escreve Cícero (cf. In Verrem, V, 64, 165).

Na Cruz de Cristo o homem é remido e a experiência de Adão é cancelada: Adão, criado à imagem e semelhança de Deus, pretendeu ser como Deus com as próprias forças, colocar-se no lugar de Deus, e assim perdeu a dignidade originária que lhe fora atribuída. Ao contrário, Jesus estava «na condição de Deus», mas rebaixou-se, entrou na condição humana, em total fidelidade ao Pai, para redimir o Adão que está em nós e restituir ao homem a dignidade que perdera. Os Padres da Igreja realçam que Ele se fez obediente, restituindo à natureza humana, através da sua humanidade e obediência, o que se tinha perdido por causa da desobediência de Adão.

“A Encarnação e a Cruz recordam-nos que a realização plena consiste em conformar a própria von-tade humana à do Pai, em livrar-se do próprio egoísmo, para se encher do amor, da caridade de Deus e assim se tornar verdadeiramente capaz de amar os outros. O homem não encontra a si mesmo per-manecendo fechado, buscando a própria afirmação. Só saindo de si mesmo ele se encontra; só se sa-irmos de nós mesmos nos encontramos. E se Adão queria imitar Deus, por si só isto não é mau, mas errou sobre a ideia de Deus. Deus não é alguém que quer apenas grandeza. Deus é amor que se doa já na Trindade, e depois na criação. E imitar Deus quer dizer sair de si mesmo, doar-se no amor”.

“Na segunda parte deste «hino cristológico» da Carta aos Filipenses, o sujeito muda: já não é Cristo, mas Deus Pai. São Paulo realça que é precisamente pela obediência à vontade do Pai, que «Por isso, Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o nome que está acima de todo nome» (Fl 2,9). Aquele que se abaixou profundamente assumindo a condição de escravo, é exaltado, elevado sobre todas as coisas pelo Pai, que lhe dá o nome de «Kyrios», «Senhor», a suprema dignidade e senhorio. De fato, diante deste nome novo, que é o próprio nome de Deus no Antigo Testamento, «todo joelho se do-bre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua confesse: “Jesus Cristo é o Senhor”, para a gló-ria de Deus Pai» (vv. 10-11)”.

“O Jesus exaltado é o da Última Ceia, que depõe as vestes, se cinge com uma toalha, se inclina para lavar os pés aos apóstolos e lhes pergunta: «Entendeis o que eu fiz? Vós me chamais de Mestre e Senhor; e dizeis bem, porque eu o sou. Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros» (Jo 13,12-14). É importante recordar sempre isto na nossa oração e na nossa vida: «A ascensão a Deus verifica-se precisamente na descida do serviço humilde, na descida do amor, que é a essência de Deus e portanto a força verdadeiramente purificadora, que torna o homem capaz de compreender e de ver Deus» (Bento XVI, Jesus de Nazaré, Milão 2007, p. 120)”.

O hino da Carta aos Filipenses oferece-nos aqui duas indicações importantes para a nossa oração.

“A primeira é a invocação «Senhor», dirigida a Jesus Cristo, sentado à direita do Pai: Ele é o único Senhor da nossa vida, no meio de muitos «dominadores» que a querem orientar e guiar. Por isso, é necessário dispor de uma escala de valores na qual a primazia compete a Deus, para afirmar com são Paulo: «Mais que isso, julgo que tudo é prejuízo diante deste bem supremo que é o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele, perdi tudo e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo» (Fl 3,8). O encontro com o Ressuscitado levou-o a compreender que Ele é o único tesouro pelo qual vale a pena despender a própria existência”.

cc51-5.JPG“A segunda indicação é a prostração, o «dobrar-se de todos os joelhos» na terra e nos céus, que evoca uma expressão do profeta Isaías, onde indica a adoração que todas as criaturas devem a Deus (cf. 45,23). A genuflexão diante do Santíssimo Sacramento, ou o pôr-se de joelhos na oração exprimem precisamente a atitude de adoração perante Deus, também com o corpo. Daqui a importância de realizar este gesto não por hábito e à pressa, mas com consciência profunda. Quando nos ajoe-lhamos diante do Senhor, professamos a nossa fé nele, reconhecemos que Ele é o único Senhor da nossa vida”.

O papa Bento XVI termina: na nossa oração fixemos o nosso olhar no Crucificado, detenhamo-nos em adoração mais frequentemente diante da Eucaristia, para fazer entrar a nossa vida no amor de Deus, que se abaixou com humildade para nos elevar a Ele.

Perguntamo-nos: como podia o apóstolo Paulo alegrar-se diante do risco iminente do martírio e da efusão do seu sangue? Isto só é possível porque o apóstolo nunca afastou o seu olhar de Cristo, até se conformar com Ele na morte, «na esperança de alcançar a ressurreição dos mortos» (Fl 3,11).

‘Pela Cruz à luz’

cc51-6.JPG“Fixar o olhar no Crucifixo” foi a vida do nosso querido e saudoso Dom José Mauro Pereira Bastos. ‘Pela Cruz à luz’, esse lema foi a mística de sua vida e de seu apostolado. Ele foi o primeiro bispo de Janaúba (MG), de 2000 a 2006. O povo tem ainda hoje uma profunda recordação. Ele foi o ‘bispo do povo’, conhecia e amava seu povo, lutava com ele para reivindicar seus direitos, como o direito à água e aos recursos na área da Saúde e da Educação.

Faleceu na manhã do dia de hoje, 14 de setembro de 2006, Festa da Exaltação da Santa Cruz, no território de Carmópolis (MG), vítima de um acidente automobilístico, enquanto de Guaxupé, para onde tinha sido transferido há apenas três meses, estava indo a Belo Horizonte para uma reunião com a Juventude do Regional Leste 2. Seu corpo se tornou uma ‘tocha’ que iluminou aquela região. ‘Pela Cruz à luz’. A ele nossa gratidão.

A Cruz de Jesus torna-se o espelho para o passionista

cc51-7.JPGO evangelista São João nos apresenta a cruz, ponto supremo de ignomínia, como vértice da glória. Olhando para a cruz de Jesus, a exemplo do apóstolo Paulo e de Paulo da Cruz, nosso fundador, iremos acolher no Crucificado o dom de amor do Pai.

Jesus crucificado é a suprema manifestação da glória de Deus. Por isso, a cruz torna-se símbolo de vitória, de dom, de salvação, de amor. Tudo o que podemos entender com a palavra ‘cruz’ - o sofrimento, a injustiça, a perseguição, a morte - é incompreensível se for olhado apenas com olhos humanos. Mas, aos olhos da fé e do amor, tudo aparece como meio de conformidade com Aquele que nos amou por primeiro. Então, o sofrimento não é vivido como fim em si mesmo, mas como participação no mistério de Deus, caminho que leva à salvação.

Para a nossa Província, que leva com orgulho o nome Exaltação da Santa Cruz, celebrar esta festa significa não perder de vista a justificativa que nos levou a escolher o nome: reavivar a ‘Paixão pela vida’ para ‘aliviar’ todo tipo de sofrimento humano com o ‘remédio’ da Memoria Passionis.

cc51-8.JPGPor isso, a Cruz de Jesus torna-se para nós o espelho em que, refletindo a nossa vida pessoal e co-munitária, o nosso apostolado, podemos medir e avaliar nosso compromisso com o voto de ‘Fazer Memória da Paixão de Jesus’.

Não temos outro parâmetro para medir nosso compromisso com o carisma passionista, além da Cruz de Jesus, sinal de amor até o fim (Jo 13,1).

O nosso Fundador nos lembra do que o único verdadeiro amor é o amor oblativo. O amor se não é renúncia, sacrifício, autodomínio, ascese, abnegação, ele não é verdadeiro, é apenas a máscara do egoísmo e individualismo.

O Coração de Jesus, aberto com uma lança na cruz (Jo 19,34) é a fonte do amor oblativo. Por isso, rezemos como São Francisco de Assis diante do Crucifixo: Deus Altíssimo e glorioso, iluminai as trevas do meu coração. Concedei-me uma fé reta, uma esperança certa e uma caridade perfeita, juí-zo e discernimento para cumprir a tua verdadeira e santa vontade. Amém (Bento XVI).

Belo Horizonte, 14 de setembro de 2020
Festa da Exaltação da Santa Cruz

Pe. Giovanni Cipriani
Superior provincial