Belo Horizonte, 01 de julho de 2022
Festa do Preciosíssimo Sangue de Jesus
"IMAGINE-SE NO CALVÁRIO”
Em 1728, Paulo da Cruz e o irmão João Batista se estabelecem definitivamente no Monte Argentário, no eremitério de Santo Antonio, dedicando-se à catequese e ao apostolado nas cidades vizinhas. Em 1730, na cidade de Talamone (GR), pregam a primeira ‘missão popular’. Atraídos pelo zelo dos dois, começam a chegar os primeiros companheiros. Em março de 1736, Paulo está pregando em Porto Ercole, uma pequena cidade aos pés do Monte Argentário. De lá, no dia 23, escreve uma carta ao Pe. Francisco Antônio Appiani - que será o primeiro Secretário geral da Congregação -, que lhe tinha manifestado um momento de crise vocacional:
“Reavive docemente a fé, imagine-se no Calvário, e lance todos os seus pensamentos e olhares amorosos sobre Jesus Crucificado, se agarre à Santa Cruz, se deixe embeber a alma daquele Sangue Precioso”.
Lançar “os olhares sobre Jesus Crucificado”, é um pensamento recorrente nas cartas do nosso santo Fundador. “Os melhores professores são aqueles que te dizem para onde olhar, mas não te falam o que ver”, escreve Alexandra K. Trenfor. Mas, o nosso Fundador, como ‘místico professor’, nos faz vislumbrar o que vemos quando olhamos para o Crucifixo. Para ele, o Calvário é o laboratório onde “aprendemos todas as virtudes”. “Se deixe embeber a alma daquele Sangue Precioso”. Hoje celebramos a festa do Preciosíssimo Sangue de Jesus, festa tão querida para o Nosso Fundador e aos primeiros passionistas.
É pelo Sangue de Cristo que fomos “lavados dos nossos pecados para servirmos ao Deus vivo” (Heb 9,14). “É neste Sangue que o pecador encontra confiança para se converter, e o justo força para perseverar no bem” (São Vicente Maria Strambi). Pelo sangue derramado na cruz, Jesus é para nós o “Senhor do perdão, da esperança e da alegria” (Hino das Vésperas da festa).
“Imagine-se no Calvário”. O Calvário é o lugar próprio do Passionista; qualquer outro lugar é “fora do lugar”. Jesus (Homem) na cruz é a humanização e a concretização do amor do Pai (Deus). É o ‘divino’ que se faz ‘humano’; a ‘teoria’ que se torna ‘prática’. Deus no AT falava de amor e de misericórdia, agora, no NT, Jesus nos ensina como tudo isso deve ser colocado em prática.
“Da contemplação de Cristo crucificado, recebem inspiração todas as vocações” (VC 23). Assim foi para o nosso Fundador e assim foi para tantos outros Religiosos Passionistas. É no Calvário que encontramos as motivações e a ‘força espiritual’ para viver com dedicação, maturidade e alegria anossa vocação de consagrados.
A contemplação contínua de Cristo na cruz nos leva a nos apaixonar por Ele, que é a razão do nosso ser passionista. Eu estou convencido de que nós ou somos apaixonados pelo Cristo na cruz, ou somos pessoas falidas e frustradas, que andamos sem motivações e sem entusiasmo. Nesta última ‘carta circular’, queridos irmãos, queria partilhar com você algumas situações que não consegui acompanhar e ajudar como queria. Nos oito anos de governo, encontrei tantos Religiosos entusiastas, contentes, animados, sonhadores, com coração aberto e alegre. Aprendi muito com eles.
Mas encontrei também Religiosos insatisfeitos, sem sonhos nem entusiasmo; Religiosos que acham que sua vida, seu entusiasmo e sonhos dependem do superior provincial e da Província. Que tristeza! Tentei ajudar, mas não encontrei muita abertura. A impressão que tenho é de que precisamos crescer na compreensão da autonomia e individualização da própria auto realização Ninguém e nada pode me impedir de sonhar, de dar um sentido à minha vida. Mesmo no ‘campo de concentração, podemos encontrar o sentido da nossa vida”, dizia V. E. Frankl.
O sentido da vida está no ser “pessoa em saída”, parafraseando o Papa Francisco. Jesus é muito claro sobre isso: “Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem não faz conta de sua vida neste mundo, há de guardá-la para a vida eterna” (Jo 12,25). Em julho de 1963, o jovem presidente dos EUA, John F. Kennedy, visitou a cidade de Nápoles; um jovem lhe perguntou: “O que o senhor está fazendo para os jovens americanos”; a resposta de Presidente foi: “Eu pergunto aos jovens americanos: o que vocês estão dispostos a fazer para a América?”.
Aos Religiosos que me perguntam: “Qual projeto, sonhos tem a Província papa mim?”. Eu respondo: “A Província tem projetos e sonhos que você tem; se você tem sonhos e projetos, a Província tem sonhos e projetos; se você não tem sonhos e projetos, nem a Província tem sonhos e projetos”.
Os projetos e os sonhos da Província são os projetos e os sonhos de cada um de nós. Viktor E. Frankl - o psicólogo que deu um enfoque humanista-existencial à psicologia - tem uma sentença essencial e existencial no seu livro ‘O sentido da vida’: “não importa de modo algum aquilo que podemos esperar nós da vida, mas importa, definitivamente, somente aquilo que a vida espera de nós”. A vida, e não somente a vida passionista, nos faz perguntas a cada dia e a cada hora, e espera de nós respostas operativas, ações e comportamentos concretos e entusiastas. . É, pois, urgente hoje o imperativo da alteridade numa dinâmica existencial proativa.
“Pelo fato de sermos religiosos, não nos livramos da condição humana. Continuamos com nossos pensamentos, nossas emoções, nossos sentimentos, nossas imagens, que ora vibram de forma elevada, ora vibram de forma inferior, determinando nossas escolhas, nossas ações, nossas palavras, nossas relações humanas. Enfim, determinam se estamos contaminados pelo nosso eu inferior (apegados a nós mesmos) ou se estamos servindo o nosso Eu superior (abertos aos outros) - nossa Luz, nosso lado divino”.
“Nós, religiosas e religiosos - mulheres e homens de Deus - poderíamos supor que nos pautamos pela Luz, pela natureza divina, pelo Eu superior; no entanto, olhando para nós, de forma consciente, detectamos que, em nossas relações e na missão, muitas vezes deixamo-nos dominar pelo eu inferior: arrogância, inveja, ambição, vaidade, apegos, conflitos internos, medos, baixa autoestima, impotências, vícios”.
“O ser humano vive plenamente a própria existência somente à medida que se orienta para algo ou alguém que se encontra além de si mesmo e que representa um valor, um ideal, um projeto carregado de sentido. A estrutura do ser humano é concebida para abrir-se ao mundo circundante e para pôr-se em relação com os outros. A auto realização e a plenitude existencial são alcançadas à medida que nos ocupamos com os outros, esquecendo-nos de nós mesmos. Assim, a vida adquire a mais preciosa e autêntica beleza” (E. Fizzotti, Psicologia e maturidade na Vida Consagrada, São Paulo, Paulus, 2014. Resenha na Convergência, n. 531, 2020).
Formação pascal
Para alcançar a “mais preciosa e autêntica beleza”, precisamos assumir uma autêntica formação pessoal. A pessoa é uma unidade dinâmica; em quanto tal, ela está sempre em estado de formação. Assumir essa realidade com responsabilidade, é sinal de seriedade e de maturidade. Se isso é para todos, o é, sobretudo, para nós, chamados por vocação a sermos ‘mestres em humanidade’; o Papa Francisco lembrou isso recentemente aos formadores do Seminário Arquiepiscopal de Milão: “a Igreja e o mundo precisam de sacerdotes e consagrados maduros e especialistas em humanidade e proximidade” (14/06/2022).
Não basta ser pessoas maduras, nós devemos ser ‘especialistas em humanidade’. Isso pode acontecer somente quando nós assumimos a formação pessoal como formação pascal, pois somente uma ‘formação pascal’ é verdadeiramente transformadora. A formação, inicial e permanente, na Vida religiosa consagrada se não é ‘formação pascal’, é apensa superficial, de camada, sem motivações e sonhos. A formação pessoal ou é um ‘processo pascal’ ou será um fracasso.
‘Formação pascal’ é assumir o mistério da Morte-Ressurreição’ de Jesus como processo de morte-vida no dia a dia de minha vida. Em Jesus morte-ressurreição não são eventos separados no tempo: o domingo da Ressurreição ‘está’ na Sexta-feira santa. Isso é expresso de uma maneira tão clara e profunda nas palavras de K. Rahner: “Morte e Ressurreição de Cristo formam um único processo interdependente em suas fases intimamente indissolúveis”.
‘Formação pascal’, então, significa enxergar e sonhar “a vida nova no grão de trigo que está morrendo”. É uma ‘morte quotidiana’, pois formação é renúncia, sacrifício, treinamento para enfrentar os desafios da vida. Tudo isso pode aparecer somente ‘morte’ se não sabemos vislumbrar no horizonte da morte (renúncia, sacrifício) a beleza e a alegria do ‘homem novo’ (Ef. 4,24).
Na ‘formação pascal’ devemos ter bem claro: o “que deve morrer” e o “novo que vai crescer”. Deixar morrer é a condição para o novo nascer. O ‘novo’ não nasce sem a ‘morte’; o ‘novo’ nasce na ‘morte’. Assim como acontece com o ‘grão de trigo’ (Jo 12,24): o processo de putrefação-germinação é um processo contínuo: no que vai morrendo vai crescendo.
‘Formação pascal’ significa que a formação pessoal não pode ser reduzida apenas na correção de um defeito; ela é uma metamorfose, uma restruturação global e dinâmica da personalidade, pois o defeito é sempre a expressão de uma personalidade toda inteira. Podemos ver isso nos dependentes químicos: aquele jovem que decide deixar a droga, dificilmente irá conseguir; aquele que quer ‘mudar de vida’ (processo global) vai conseguir mais facilmente. Nesse caso, o apóstolo Paulo diria é “renovar a maneira de pensar” (Rm 12,2).
Na teologia espiritual, esse processo chama-se também de ‘ascese’. Ascese não é mortificação, é aprender a educar as pulsões para que elas se tornem uma força criativa e não destruidora; a sabê-las valorizar e a não reprimi-las, pois, as pulsões reprimidas podem explodir quando menos esperamos e destruir um bom relacionamento. Ascese é também aprender a usar os ‘freios inibitórios’, quando for necessário; aprender a agir não pelo ‘eu gosto’ mas pelo ‘eu quero’.
Tudo isso é formação pessoal; um processo de ‘morte-ressurreição. Podemos dizer, parafraseando o nosso Fundador, que a formação pessoal “é um mar de dor e um mar de amor”. Se ela é somente dor (obrigação), não vai dar resultados duradouros, se é somente amor, é pura ilusão. Na ‘morte’ quotidiana ao próprio egoísmo, comodismo, individualismo devemos entrever a pessoa nova, mais madura, mais alegre, mais acolhedora que está nascendo em nós. A ‘morte’ (= sacrifício, renúncia) deve ser motivada pelo resultado e não apenas para cumprir uma obrigação; motivada pela alegria do que está ‘crescendo no morrendo’.
Síndrome de Burnout
Nestes últimos tempos, a crônica nos tem apresentado casos de padres deprimidos, com manifesta Síndrome de Burnout, até chegar ao suicídio. Devemos ter o máximo respeito dos irmãos que chegam a esse ponto. Penso, porém, que não podemos atribuir isso ao excesso de trabalho nem à incompreensão dos Superiores (Bispos). A análise deve ser muito mais profunda, e as causas precisa buscá-las no histórico da pessoa e na falta de uma autêntica ‘formação pascal’ que forma a pessoa a uma maturidade psicológica e a uma ‘robusta espiritualidade’.
Sabemos que a Síndrome de Burnout, chamada também de Síndrome do Esgotamento Profissional, é um distúrbio emocional caracterizado por uma série de fenômenos de cansaço, decepção, desgaste e improdutividade que resultam em desânimo e desinteresse por tudo o que antes era o trabalho preferido. Atinge, sobretudo, as pessoas que cuidam de outras pessoas (operadores sociais, médicos, enfermeiros, psicólogos etc.), entre elas, os padres; são as chamadas de ‘profissões de ajuda’ (‘helping professions’ e as ‘high-touch’).
Geralmente, a síndrome apresenta quatro fases:
• primeira fase: entusiasmo idealista pelo trabalho, dedicação, gratificação etc.;
• segunda fase: estagnação, inércia, desencanto etc.;
• terceira: frustração, insatisfação etc.;
• quarta fase: desempenho, desinteresse, depressão, vontade de deixar tudo etc.
Essa quarta fase é caracterizada por um estado de esgotamento emocional, físico e mental, transtornos de humor, alterações no ritmo sono-vigília, conflitos interpessoais. Psicologicamente, as causas encontram-se em situações de forte desfasamento entre as exigências do ambiente de trabalho e os recursos próprios da pessoa, um abismo que consome a energia e o entusiasmo da pessoa.
Vou fazer uma tentativa de leitura da síndrome na vida religiosa e sacerdotal. Sabemos que a síndrome de burnout atinge, como falei, sobretudo as pessoas que trabalham no social e que estão nas ‘profissões de ajuda’. E isso já põe uma pergunta: Por quê? A resposta está nas motivações. As motivações podem ser duas:
• A busca da própria realização: sucesso pessoal, egocentrismo; buscar no sucesso o ‘sentido da vida’ e a felicidade;
• A autotranscedência (de V. Frankl): o que me leva a assumir o trabalho são motivações ‘superiores’ (além de mim); eu me alimento não do sucesso, mas de uma força interior; minha realização e bem-estar psicológico não dependem do sucesso; o sucesso pode me enriquecem, mas sua falta não me empobrece.
No primeiro caso, o padre está em busca de algo que a gratifique, que dê sentido à sua vida; ele procura aprovação, elogios, aplausos; e quando tudo isso acaba, ele se sente desmotivado, vazio, esgotado, ‘burnoutado”...
No segundo caso, o padre não precisa do sucesso e da aprovação dos outros para se sentir realizado e dar sentido à sua vida; se chegarem elogios, aplausos ele fica gratificado, mas se não chegarem, ele fica imperturbado. O que o move no seu trabalho é uma força interior que ele alimenta todos os dias aos pés do Crucificado e do Santíssimo.
Temos exemplos que comprovam amplamente que não é o trabalho que mata o padre/religioso, mas o trabalho sem mística. O carro para, quando não tem mais gasolina. O padre para, quando não tem mais vida espiritual. Penso que ninguém de nós trabalha mais de quanto trabalhava o nosso Fundador, ninguém de nós tem uma vida movimentada, estressante e cheia de preocupações como ele, e ele nunca teve depressão. Ele praticava o que aconselhava para os outros: imaginava-se “no Calvário, e lançava todos os seus pensamentos e olhares amorosos sobre Jesus Crucificado, se agarrava à Santa Cruz, se deixava embeber a alma daquele Sangue Precioso”. Ele nunca se preocupou com o sucesso pessoal; única sua preocupação era a fundação da Congregação (pois estava convencido que era vontade de Deus) e a glória de Deus.
Quando nós buscamos mais o sucesso pessoal do que o ‘Reino de Deus’, quando deixamos a primazia de Deus na nossa vida, quando deixamos de nos abastecer quotidianamente aos pés do Crucificado e do Sacrário, então a síndrome de burnout é inevitável. Somos presas fáceis deste ‘devorador de autotranscedência’, quando nos expomos na rede social, nos vangloriando mais da suntuosidade das alfaias e ritos do que do mistério celebrado; seremos sempre devorados pela falta de sentido na mesma proporção que nos exaltamos a nós mesmos, numa busca “mundana” pela autopromoção, pelo carreirismo e clericalismo. Temas tão criticados pelo papa Francisco.
Nós somos “administradores dos mistérios de Deus” (1Cor 4,1); não somos operadores sociais, administradores de bens materiais; para administrar os ‘mistérios’ de Deus, além de uma robusta estrutura psicológica, precisamos de uma robusta espiritualidade, que é o antídoto da depressão e de outros mal-estares na vida. A fraqueza espiritual é o terreno onde proliferam em abundância nossos mal-estares. O cafezinho recomendado pelo nosso Fundador não é apenas para os leigos, deveria ser primeiramente para nós.
Diante das fraquezas e dos desafios da vida, o nosso Fundador nos repete: “Imagine-se no Calvário” para contemplar o “Senhor do perdão, da esperança e da alegria”, a beleza única de um coração que se doou sem reserva. Quando um passionista deixa de contemplar Jesus na Cruz, ele está deixando ‘seu amor’, sua ‘paixão’ e a tentação é procurar outra ‘paixão’. Não acontece isso na experiência humana? Há casais que na conversa se chamam de ‘meu amor’; e percebemos que quando não há mais paixão um pelo outro, a linguagem muda.
O passionista ou é um apaixonado pelo Crucificado ou é um frustrado. Não existe alternativa! Por isso, o nosso Fundador nos repete: “Cuide com empenho da sua própria perfeição, esteja recolhido em Deus no templo interior de seu espírito, leve Jesus Crucificado no oratório do seu coração; acima de tudo, pratique a verdadeira obediência, mortificação interna, sofrer e calar, exercite a mansidão, a caridade, a condescendência com todos; de tal maneira, você alcançará a santa perfeição, se for humilde de coração, pacífico e tranquilo” (Paulo da Cruz, Carta ao Irmão Luiz Basili de Santa Maria, CP. Vetralla, 11/02/1763).
A todos, meu agradecimento e meu abraço fraterno.
Passio in corde.
Pe. Giovanni Cipriani, CP.
Superior provincial